sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Véu em construção



E o dia chegou. Parecia até que desceu e amanheceu branco e se ela fechasse os olhos e respirasse fundo poderia ouvir uma música ampla e suave. Certamente um piano. O dia amanheceu branco alvo como o seu vestido.
O dia seguinte amanheceria de outra cor, não importa qual ou, melhor ainda, não amanheceria. Permaneceria ininterruptamente nas brechas da bruma aurora, com muitas cores indefinidas, em êxtase.
O dia amanheceu branco e todos os corpos abraços dali em diante seriam diferentes: êxtase, nostalgia e uma epifania moviam suas pernas para os afazeres indispensáveis daquele dia.
O dia seguinte seria indecifrável em cada um de seus momentos; sem conceitos, sem normas; inesperadamente abrupto e suave. Ela poderia escorregar por uma montanha de gelatina ou voar nas asas de um pássaro colorido.
O dia amanheceu branco e as pessoas tinham muitos olhos brancos e todos olhavam para ela. Isso não era bom nem mal mas parecia que o buraco do mundo martelava nas suas costelas feito Adão. Os bichos e as árvores, o vento e os seres vivos, todos eles, pareciam inexplicavelmente idênticos, brancos entrelaçados e abraçados. Onde acabava o pé de um começava a raiz do outro e se estendia pelas escamas além mar.
O dia branco amanheceu e a terra foi jogada por cima daquela caixa casa de madeira e enterrada. O seu último pensamento foi o de não ter se casado e deixado apenas o seu véu esvoaçando feito um prédio em construção, cheio de janelas desabitadas e corredores inexplorados.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Sardinha



Estive em Santiago do Chile. Uma cidade acolhedora, iluminada, com um Rio que lhe corta em duas e baruralha incessantemente dos Andes as tardes suspensas.

Certo dia, visitando alguma construção, observei, suspenso, noutro prédio de importância urbanística evidente, um índio guardando o horizonte.

Por qual razão o colocaram alí?

Logo pensei que a resposta poderia ser uma só: ele está convocando seus antepassados e seus contemporâneos para fazer uma deglutição dos Bispos Sardinhas de lá!

Uma maravilha pois consegui fotografá-lo apenas duas vezes: uma exatamente quando ele se virou e a outra quando ele já ia partir...

... durante a noite, influênciados pelo espanhol do fantástico de Borges, vidas ocultas se movimentam nos columbários da cidade que também abriga um dos maiores museus de arte e artefatos das civilizações andinas.

Durante um show de jazz cujo som era aberto ao público que ficava do lado de fora da praça, um vinho cujo rito e as raízes brotavam dos tons, ora da música, ora do álcool, celebrava uma dança com o povo e todos, com a mesma cara daquele guerreiro intransparentemente suspenso, foram em busca do Sardinha.

Só a antropofagia nos une!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Não-verdades entre o diálogo e a História

A História tem muitos componentes que a definem e tratam de sua especificidade, ou, melhor, de suas multiplas especificidades. A História enquanto ciência é quase um paradoxo uma vez que seu elemento fundamental é a fluidez..., do texto, do observador, do objeto, do conhecimento...para não falar do espaço, do tempo e das flores.

Podemos compreender como um esboço de método de investigação histórica a identificação de evidências que geram um problema ao qual se atribui um recorte no espaço e no tempo e que possui fontes que materializam um amálgama de unidade em torno da questão levantada. Porém, conforme explica o historiador Thompson, os fenômenos estudados estão em constante movimento e, segundo o autor, evidenciam manifestações contraditórias cujas:

"evidências particulares só podem encontrar definição dentro de contextos particulares, e, ainda, cujos termos gerais de análise (isto é, as perguntas adequadas à interrogação da evidência) raramente são constantes e, com mais freqüência, estão em transição juntamente com os movimentos do evento histórico". (THOMPSON, A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros: uma crítica ao pensamento de Althusser, 1981).

Por estas veredas podemos compreender a relação entre o conhecimento histórico e o seu objeto como algo que deva ser revelado a partir de um flutuante diálogo.

O Historiador da cultura, Roger Chartier, indica a necessidade de se compreender a produção do social a partir de suas manifestações e práticas que engendram relações complexas e variáveis, tendo como um influxo especialmente fértil para o históriador as tensões sociais postas por encontros de, por um lado, uma força criativa e expansiva (algo como o impulso dionisíaco nietzscheziano) e, por outro, as normas e convenções que fixam os limites da sociabilidade. Como diz Chartier:

(...) o objeto fundamental de uma história que visa a reconhecer a maneira como os atores sociais dão sentido a suas práticas e a seus discursos parece residir na tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, de outro lado, as restrições, as normas, as convenções que limitam – mais ou menos fortemente de acordo com sua posição nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, enunciar e fazer. (CHARTIER, À Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes, 2002,)

Retomo aqui o início deste texto, onde disse que a História, enquanto ciência, traduz um paradoxo. Este paradoxo refere-se exatamente aos limites de uma ciência que visa fixar sua linguagem num universo totalizante de relações lógico-matemáticas, deixando o sentido das emoções e as emoções dos sentidos encasulados em cápsulas de uma profilaxia que procura difundir o lento anestesiamento dos sentidos, no tempo e no espaço.

Talvez o fundamental de uma teoria da História resida na idéia de pensá-la como algo que produz não-verdades...